Pessoal, mais um continho pra vcs! :D
Hoje deixo aqui o conto PSPA E PSPE, ganhador do concurso Cora Coralina, em 2012. Espero que curtam. Boa leitura!
PSPA E PSPE
Eu morri em uma época
complicada. Cheguei ao céu em tempo de política. Já na portaria do céu, três
anjinhos sorridentes tentaram comprar o meu voto, me oferecendo regalias,
nuvens macias para descansar, cestas básicas pós-morte contendo vela, rosário e
orações extras do banco de oração celestial, estas coisas que todo morto
precisa.
No começo eu me senti
em casa, como bom brasileiro que sou, estava acostumado com esse tipo de
tratamento. Pensei que fosse pegadinha do demônio, para testar minha
honestidade, então recusei às ofertas e entrei na fila, que há esta hora, já
dobrava o quarteirão.
Conforme a fila andava,
os simpáticos anjinhos trabalhavam de cabo eleitoral, distribuindo santinhos
(literalmente!), e abanando bandeirolas dos candidatos a gerente do céu. São Paulo
e São Pedro pareciam ser os mais fortes, mas eu reconheci também as fotos de
São Judas, São Marcos e São Mateus.
Na portaria, pouco
antes do portão dourado que dava acesso ao paraíso, haviam outdoors dos candidatos apoiados por políticos famosos. Do meu lado
direito estava a imagem de São Paulo ao lado de Adão e Eva, dois representantes
da raça humana. Do lado esquerdo aparecia São Pedro segurando o cajado de
Moisés, sorridente, estampado na frente da imagem do Mar Vermelho aberto.
Volta e meia os portões
se abriam, e carros munidos de alto-falantes, pintados com a foto dos
candidatos, saíam para abastecer o tanque de brisa. As músicas de campanha não
eram muito diferentes das daqui da Terra. Fulano é o melhor, Sicrano tem as
melhores soluções, Beltrano é o que vai trabalhar pelo povo celestial.
Um passo atrás, uma
pequena legião protestava pedindo mudança de poder, um voto de confiança para a
oposição, neste caso São Paulo, e apontavam alguns deslizes de São Pedro na
atual administração. Eles alegavam ter documentos que provavam a influência do
porteiro do céu no escândalo do mensalão das orações. Por outro lado, os cabos
eleitorais de São Pedro, anunciavam ter gravações em que São Paulo aparecia com
as cuecas cheias de nuvenzinhas, aceitas como suborno para facilitar a vida de
uma igreja em um processo licitatório.
Naquele tempo em que
fiquei na fila, ouvindo uma porção de barbaridades e realmente me sentindo em
casa, tive dúvidas se aquilo realmente era o céu. Chamei um dos esbeltos
arcanjos que se postavam em frente ao portão, um de cada lado, como se fossem
escudeiros reais, desses que se vê em filmes da época medieval, e perguntei se
não seria deselegante de minha parte, descer para dar uma espiadela no inferno.
Munido de um certo ar
de curiosidade, mas sem tempo para discutir, o arcanjo concedeu-me o desejo. Me
acompanhou até um dos elevadores celestiais, onde a fila não era menor do que a
da entrada do paraíso. Enquanto lá permaneci, percebi com estranheza, que o
elevador lá de cima não se prendia a cabos de aço, como eu estava acostumado a
ver aqui na Terra. Um arrepio gelado percorreu minha alma (pois já não tinha
corpo), e eu quase desisti da empreitada, mas quando olhei para trás e vi que a
fila atrás de mim tinha aumentado mais do que o dobro, resolvi seguir em
frente.
Finalmente, chegada a
minha vez, entrei no elevador flutuante, ainda com o pé atrás, mas seguro de
que, já que eu estava no céu, a coisa devia funcionar milagrosamente. Observei
a placa colada na parte superior da porta onde se lia a lotação máxima: 10
almas de cada vez. Tentei olhar em volta, mas estava tão apertado que não pude
sequer ver a luz por entre as almas. Imaginei umas quinze ou vinte almas junto
com a minha no elevador.
De repente, começou a
ficar quente. Foi até confortável para mim, por que achei o céu demasiado
fresquinho, e bem que gosto do calor das praias da Bahia. O problema é que além
de ter ficado quente e escuro, o elevador começou a balançar, e já não tinha
mais aquele aspecto angelical de antes.
O pânico foi se
espalhando entre as almas enfiadas no compartimento apertado, até que a descida
chegou ao fim. As portas se abriram lentamente, e o cheiro do enxofre já era
forte o bastante para fazer com que todos espirrassem ao mesmo tempo, então eu,
todo suado e empapado de meleca de nariz, desci do elevador.
Logo na recepção,
pequenos cramunhõezinhos distribuíam docinhos aos recém-chegados. Um demônio
adulto, que aguardava às portas do elevador, nos acompanhou até o balcão de
cadastro, na recepção, onde fui gentilmente atendido (sem demora) por duas
demônias loiras e siliconadas.
As portas do inferno
não eram menos bonitas que as do céu. Os portões de bronze com muitos diabinhos
alados entalhados fizeram-me lembrar os anjinhos do paraíso, e a todo o
momento, eu ouvia uma caixa de som que chamava os funcionários de Satã,
educadamente em uma voz feminina, que se dirigissem a certos setores infernais.
Não tardou para que o
Tinhoso em pessoa se apresentasse, trajando um elegante terno de cetim negro,
sapatos lustrados e com um cravo vermelho na lapela. A maioria do pessoal
suspirou, admirados coma fineza da figura. Eu fiquei quieto, apenas observando.
Depois de um discurso
cheio de pompa e circunstância, o Belzebu se dirigiu para o portão principal e
abriu uma frestinha, deixando aparecer a maravilha lá dentro do seu reino.
Todos os pescoços se espicharam para enxergar, o que parecia mesmo ser um mar
azul como anil, que encontrava ao longe uma faixa de areia amarela como ouro.
Apenas o céu do inferno não aparentava tão natural como o céu propriamente
dito, tinha um tom um pouco avermelhado demais para um céu, era como um pôr de
sol de um verão ardente.
Diante daquela visão,
todos se aproximaram mais do Cramunhão, chegando a beirinha do portão bronzeado
e, como eu sempre fui assim magro e minguado, fui empurrado para o finalzinho
da fila.
Sorte a minha ter
ficado mais perto do elevador! Mal os pobres coitados se dobraram para ver
melhor a paisagem infernal, que o Cramunhão se contorceu, esticou a pata peluda
no traseiro das almas curiosas, e derrubou mais de uma dúzia. Depois se virou
para os que corriam apavoradas, esticou a mão mais peluda ainda, e agarrou mais
meia dúzia pelo colarinho, lançando-os direto no subsolo.
Quando eu alcancei a
porta do elevador, dois recepcionistas do Demo ainda tentaram me agarrar, mas
eu me debati feito lagartixa, e mais do que depressa apertei o botãozinho azul
rumo ao céu.
De volta ao colégio
eleitoral celestial, tratei de me filiar imediatamente em um partido político,
o qual nem ao menos me recordo qual foi. O fato é que hoje, descanso em minha
nuvem (que divido com mais três almas penadas), ajudo nas tarefas celestiais e
nem sequer reclamo das filas. Como bom brasileiro que sou, trato de não ver nem
ouvir, e muito menos falar, coisa alguma.
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